Tenho evitado expor nesta rede social minha opinião pessoal a respeito da pandemia. Mas…
Hoje, eu estou cansada. E talvez por isso, tenha burlado minha própria regra: “não comente sobre isso, Débora… apenas continue a nadar”.
Então, pra não concordar ou discordar de ninguém, queria explicar uma coisa, pra ajudar (quem concorda e quem discorda) a pensar fora da caixa:
VAGAS DE UTI
Nunca foi o forte do brasileiro, convenhamos!
Na rede pública, há uma recorrente falta de vagas, e quando a gente fala em colapso do sistema, não é pela UTI apenas, até porque, sem vaga de UTI a gente sabe brincar. O médico brasileiro é formado pra lidar com isso. Acreditem!
Já segurei plantão de 12horas, em sala de emergência de SUS, com 14 entubados num lugar que caberiam apenas 8. E com a UTI lotada.
Agora, sabe a hora que trava?
A hora que a gente liga pra diretoria e fala “precisa ‘fechar a porta’ (leia-se: não aceitar mais referenciados, seja do SAMU, seja transferência) da Emergência!!! Não cabe mais!!!”???
Não é a hora que acaba vaga em UTI. É a hora que acabam os ventiladores do hospital.
Meu amigo… nessa hora… é um frio na barriga constante! Sabe por que? Porque no SUS, não existe como FECHAR a porta.
Tem aproximadamente uma semana, li que o Ministério da Saúde enviaria a Manaus mais 15 ou 20 ventiladores mecânicos. Sabe o que é isso?
Isso representa 2/3 da quantidade de ventiladores que temos no hospital onde eu trabalho. Um hospital particular, de tamanho mediano, numa cidade de 400mil habitantes. Onde temos mais vários outros hospitais.
Basicamente? Não vai servir nem pra começar a brincadeira no Amazonas. Pronto. Isso que eu falei não é opinião pessoal. É vida real.
E o que tem a ver meu cansaço com isso?
Relato de caso:
32 anos. Masculino. Prestador de serviço essencial (alimentício). Morador da cidade de São Paulo. Sem comorbidades. Transferido pra terra do caqui porque na capital, nos hospitais referenciados do plano de saúde dele, não tinha mais vaga para suspeita de coronavírus (ou seja, até pode ser que tenha vaga no hospital, mas não na ala definida pra isolamento).
Há 5 dias internado. Sempre gentil. E piorando. Sozinho. Isolado (nem a família pode visitar).
Ele me olha e diz:
– Quando essa falta de ar vai acabar, doutora?
Ele não sabia, mas já estava uma correria fora do quarto pra separarmos material – ele seria entubado. E qual era a preocupação da equipe? Não tinha vaga na UTI pra ele ir imediatamente. Num hospital particular de uma cidade de interior. Mas o alívio era que tínhamos ventilador.
Eu tentei, com um nó na garganta, explicar:
– Você não consegue mais respirar sozinho… Seu pulmão está cansado. Nós vamos te ajudar a acabar com a falta de ar. Você vai dormir. E vamos ligar você ao respirador.
Silêncio. Meu e dele.
– Você entendeu?
– Entendi… é que eu nunca passei por isso…
Gelei. A única coisa que consegui responder:
– Nós também não…
Sai do quarto, e chorei. Respirei. Voltei pro front.
Neste momento recebo um aviso: “doutora, a mãe dele está aí, veio trazer roupas e produtos de higiene pessoal.”
Decidi dar a notícia de forma mais digna do que pelos boletins telefônicos diários que fazemos todas as tardes. A cada dia, pra mais famílias…
Me apresentei. E expliquei o que estava acontecendo.
– Doutora, não entendo. Pra mim, quando alguém vai pra UTI, eu sempre acho que é porque a pessoa está entre a vida e a morte. Me diz: meu filho está entre a vida e a morte?
Deus do céu… como tranquilizar uma mãe? Tem como fazer isso? Há 12 anos sendo médica, ainda não descobri.
Tento. Explico. Finalizo:
– Estamos fazendo tudo que podemos por ele! Agora a senhora vai rezar muito, pra que o pulmão dele responda! Peça com fé em Deus! Ele é jovem, é forte, e vai sair dessa!
– Ai doutora… eu queria tanto poder te abraçar agora… mas eu sei que não posso…
Ela chorou. Eu chorei.
Perdi o rumo por bons minutos. Na verdade, perdi o rumo pelo resto do dia. Talvez por isso eu esteja cansada.
De ler opiniões pessoais ou interpretações surreais.
De viver e ver cada dia mais casos e mais história.
De saber que não sabemos nada, e ver que quem não sabe acha que sabe tudo.
De ver todo dia mais tomografias com pulmões destruídos.
De ver as ruas e supermercados lotados.
E hoje, o que fica na minha mente é isso:
– É que eu nunca passei por isso…
– Nós também não…
Obs: rapidamente conseguimos a vaga de UTI.
Relato da coordenadora da clínica médica do Hospital Ipiranga de Mogi das Cruzes.
Por Débora De Barros Abdala
Imagem de Capa: freepik
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